Bárbara Paes: ciberativistas feministas negras no Brasil e o neoliberalismo de “mulheres na technologia”

Ani Hao
18 min readNov 23, 2020

Essa entrevista foi originalmente publicada no GenderIT em inglês, e também ficará disponível em espanhol no mesmo site.

Eu tive o prazer de entrevistar a Bárbara Paes, uma jovem feminista que trabalha na intersecção de tecnologia e justiça social, co-fundadora do Minas Programam, um coletivo de São Paulo liderado por jovens feministas racializadas e que ensina programação, além de outras habilidades para esse mesmo público. Ela também trabalha no The Engine Room. Faz muitos anos que nós conhecemos em um encontro da Internet Feminista da APC na Málasia, mas tivemos muitas conversas ao longo dos anos sobre recursos e financiamento para ativismo feminista, movimentos liderados por jovens feministas, e feministas negras brasileiras. Para essa conversa, nos aprofundamos sobre as experiências formativas da Paes como uma jovem feminista, as suas práticas de liderança, colaboração, e parceria, e a sua perspetiva como feminista negra na co-optação do tema de “gênero” na área de tecnologia, e também alguns dos projetos que ela tem trabalhado durante a pandemia.

Ani Hao: Então, como é que você começou a se identificar como feminista? Quem te influenciou nesse período (pode ser um período de tempo bem extenso)?

Bárbara Paes: Legal. Eu acho que assim, eu já pensei muito nisso, em como que eu me moldei. É muito doido, tem uma série de coisas na forma q fui criada, então não teria como eu não me acabar feminista, mas eu fico pensando que os anos que foram muito importantes pra mim foi no ensino médio. Teve uma virada na escola particular até os quatorze anos, daí fui pra uma escola pública em São Paulo, e essa experiência me formou muito. Eu fui para uma escola que foi muito diversa, que tem uma história de ativismo há décadas. Eu acho que nessa época, não me identificava como feminista, mas foi muito importante para me politizar em alguns aspectos. Antes eu via como coisas individuais, não necessariamente eram parte de um fenômeno político. Eu acho que depois, na universidade, eu pensei nesses temas, e eu descobri o feminismo de uma forma mais profunda da forma que eu tinha antes. Eu acho que, construir com outras mulheres feministas, outras mulheres negras, que me escutaram muito [me impactou muito]. Eu acho que quando eu era mais nova — eu acho que nem é uma coisa de idade — é uma coisa de personalidade mesmo, eu tive que aprender a ouvir muitas experiências para articular as minhas.

Então, acho que vivi duas experiências paralelas que me levaram ao feminismo. De um lado, como estudante da Universidade de São Paulo, fui me conectando com o movimento estudantil e com a luta de mulheres feministas dentro do ambiente universitário. Mas na época, esse ambiente era muito branco, porque a USP é elitista e muito branca, e eu sentia que faltava muita coisa dentro daquele feminismo.

Simultaneamente, o Brasil vivia um momento em que mulheres negras estavam construindo um movimento centrado no feminismo negro. Foi em plataformas como o Blogueiras Negras que comecei a conhecer um feminismo que tinha uma perspectiva interseccional e que dialogava com as minhas vivências. Ali passei a conhecer a luta e a obra de mulheres negras como Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Jurema Werneck e muitas outras.

A evolução do como eu vejo o feminismo então parte muito da nossa produção. A produção das mulheres negras — algumas pessoas eu conheci na faculdade, foi nesse momento super pessoal. Não foi uma época de uma virada gigante, foi ter o espaço só de mulheres para discutir questões de gênero durante a graduação, isso foi super importante na minha vida porque eu acho que rola uma coisa de superioridade moral no Brasil. Nesse mundo feminista, as pessoas têm uma coisa de, quem já leu o que? Quem já esteve em determinados espaços? Quem já foi naquela conferência? Quem já conhece aquele texto que é considerado canônico daquela escritura de tal lugar? Foi importante ter um espaço em que eu não precisasse provar certos acúmulos, que muitas vezes depende do acesso que você teve em determinados momentos. Foi importante ter um espaço onde eu me senti segura, para criar projetos sem julgamento. Acho que você sabe do que estou falando.

AH: Eu acho que você está falando de espaços onde você tem autonomia e onde você se sente parte de alguma coisa.

BP: Com certeza. Eu acho que ainda, é assim, é muito doido, porque eu tenho 28 anos, eu tenho um tempo trabalhando em algumas organizações já, Minas Programam que é um projeto que eu fundei, eu tenho uma certa visibilidade. O Brasil é um país muito racista. Ainda assim, muitas pessoas não me veem, ou não veem pessoas como eu, como pessoas líderes. Ontem, minas programam com PretaLab, algumas habilidades que são necessárias, é um curso de formatismo. Você pode olhar e dizer, ah é um curso. Era um curso só para mulheres negras. Eu nunca imaginei um espaço para discutir tecnológica que fosse só para formar mulheres negras. É muito importante que a gente fosse pensada como líderes nessa área também. Eu acho muito importante pra gente se ver como líderes, mas para formar com tecnologia, para que a gente possa se ver como uma pessoa que está pensando como produzir tecnologia para não reproduzir opressões.

Cada vez mais, as tecnologias digitais estão perpetuando as repressões que a gente enfrenta no dia-a-dia. Ontem, estar nesse espaço, estar com essas mulheres negras, e pautar como essas tecnologias foram criadas, isso tem sido muito importante para nossa prática feminista, porque de forma geral, a gente é excluida desses processos. Mesmo em espaços que se veem como espaços progressistas, no Fórum da Internet aqui no Brasil, não têm mulheres negras. Eles negaram a participação espaços pra mulheres negras. Eles negaram a participação para mulheres negras ao longo dos anos. Um ano, Blogueiras Negras escreveu um texto sobre isso. E trazer minas mais novas para essas discussões, que às vezes parecem super técnicas, super restrito.

AH: Como que essa parceria com PretaLab aconteceu? Você falou que é muito importante ter esses espaços de liderança, de participação. Eu vejo que a PretaLab viu vocês como uma parceira potente, pra vcs liderarem.

BP: Desde que a PretaLab existe, acho que foi em 2017, a gente tem essa conexão. Mulheres negras que fossem de movimentos sociais ou com projetos culturais, sociais, e que quisessem ter uma presença online. Para muita gente, isso parece muito simples, ter uma presença online. Mas a gente sabe que não é tão simples. A gente montou — mulheres com projetos, a gente montou uma oficina, essa foi a primeira oficina que a gente fez, nessa oficina que eu conheci essa pessoa, e saíram dois projetos. A gente conheceu muita gente que virou — assim que surgiu a parceria com a PretaLab. A gente percebe que às vezes, a gente acaba identificando novos desejos e novas formas de atuação. Para a gente do Minas Programam, não é super óbvio criar um curso de desenvolvimento que foca no nível intermediário. A gente não vê como urgente, mas com PretaLab, a gente identificou outros públicos e que isso seria importante pra eles. Tem sido uma parceria. A PretaLab é composta de mulheres do Brasil todo, Minas Programam tem uma rede super forte em São Paulo. Então, a gente fez uma atividade que foi um grupo de estudos sobre tecnologia, mulheres e raça.

As pessoas têm muito essa noção que a tecnologia é uma coisa pesada, aí no Minas Programam, a gente sempre fala: tudo criado por pessoas tem ideologia. A gente resolveu criar um grupo de estudos para pessoas que não necessariamente trabalham com tecnologia, mas queriam aprender sobre como as tecnologias as afetam. A gente fazia muito pouca coisa virtualmente, como que a gente migra para um espaço online, a maioria do Brasil olha pro celular, não tem computador em casa, poucas mulheres podem tirar um tempo pra elas em casa. Algumas vezes, eu acho — a gente traduziu, informalmente, muitos textos de inglês para português. Isso foi muito importante.

Vocês divulgaram as traduções, publicamente?

Não, porque não são traduções oficiais.

Mas a gente fez muita resenha de livro também, muitos livros de mulheres negras que ainda não foram traduzidas. A gente traduziu entrevistas com algumas dessas autoras, como a Simone Brown. Pra gente, foi super importante porque para muitas mulheres, algumas discussões ainda ficam super inacessíveis. Elas rolam, primeiro, em um ambiente acadêmico, que não é relevante às realidades das mulheres brasileiras. Outras muitas discussões de feministas negras de outros lugares não são traduzidas porque não são prioridades das editoras.

Isso é muito comum pra feministas negras brasileiras, de traduzir informalmente, estabelecer diálogos com feministas racializadas do mundo inteiro, e a gente se inspirou muito nisso. Isso foi um passo importante pro rolê dar certo.

A outra coisa pra gente que foi muito importante, a gente queria muito garantir que o espaço não fosse exaustivo, que as pessoas se sentissem bem. Então, a gente criou um código de conduta, estabelecer alguns acordos de comunicação coletiva, para garantir que o espaço fosse respeitoso e produtivo. Eu acho que para todo mundo é um exercício entender que todo nossas vivências, nossos saberes são muito diferentes, as pessoas têm trajetórias diferentes e tal. O grupo foi muito incrível, foi uma das coisas mais legais que eu fiz nesse ano. A maioria das participantes foram mulheres negras, e o grupo foi um processo legal de recuperar, de expandir na verdade o que a gente enxerga o que é a tecnologia.

A gente olhou para textos, podcasts de mulheres negras, para ver como as mulheres negras no Brasil veem imaginando e hackeando e criando suas próprias tecnologias desde sempre. A gente também pensou muito em métodos de transmitir os nossos conhecimentos. Como que a gente transmite o que a gente sabe, sabendo que muitas dessas tecnologias são nocivas para mulheres e feministas que não necessariamente se sentem confortáveis nesse espaço?

Inclusive eu acho que você se interessaria em entrevistar a Thaynah Gutierrez, que participou no grupo de estudos. Ela está terminando o curso de administração pública agora e ela está desmistificando o que que é a política para jovens no Brasil. Como que a gente pode repensar as nossas formas de conhecimento e tal — lá na zona Oeste, que é um lugar onde o pessoal votou no presidente Bolsonaro. E no contexto do Covid-19, as pessoas estão recebendo o auxílio emergencial, que é recebido por aplicativo, que é uma coisa surreal. Ela participou de uma iniciativa onde várias pessoas jovens que sabem usar a internet, fizeram um mutirão para que as pessoas mais velhas pudessem usar esse aplicativo para receber o auxílio emergencial. Foi uma forma de cuidado com a tecnologia, eu achei muito legal. Eu acho que às vezes, a gente esquece de olhar pras pessoas que não tem muito acesso a essas tecnologias. Foi um exercício de imaginar o que a gente quer ver e o que gente precisa para chegar lá. Pra todo mundo que passou, foi uma forma de pensar.

Sim, um espaço de reflexão e também de resposta imediata também a pandemia. Eu te conheci nesse espaço de direitos digitais, com uma perspetiva feminista. Você acha que minas programam também essa perspetiva também, de como as grandes tecnologias, as grandes plataformas são nocivas, a desigualdade, também.

Com certeza. Pra gente é muito claro, como todas essas grandes plataformas, como, em empresas de technologias, as redes que a gente mais usa, tem sido usados pra reproduzir a supremacia branca. É um ponto que tem sido muito importante. Não só para questões de racismo, que é uma coisa que a gente tem pautado demais, mas também para muitas outras formas e muitos outros mecanismos de opressão. Olhar criticamente para tudo que a gente produz e usa tem sido cada vez mais presente no minas programam. Para cada vez mais, no minas programam, isso é indissociável hoje, de feminismo. Pra gente, pra nossa trajetoria, é muito contraditorio você pensar numa iniciativa feminista de tecnologia que não olhe pra compactuação dessas grandes empresas. Por exemplo, é muito difícil pra gente, a gente nunca divulga vaga de emprego em determinadas empresas. Por mais que as meninas da nossa rede precisam encontrar trabalho, mas a gente acha muito nocivo e contraditório apoiar certos espaços, como espaços de trabalho. Para muitas pessoas e muitos projetos, elas ainda se furtam dessa discussão, que não é uma discussão nada fácil. Mas a gente tem evitado desde sempre e cada vez mais, com intenção, de divulgar certos trabalhos, de colaborar com certas empresas. E a gente tem criticado muitas dessas empresas também porque a gente enxerga o que elas estão fazendo né. Eu acho que no começo do projeto, isso não era uma prioridade para gente. Eu acho que de 3 anos pra cá, isso se tornou uma prioridade indiscutivelmente. Eu acho que cada vez mais, é evidente que elas não estão afim de mudar, não vão mudar. Não importa a quantidade de mulheres lá dentro, essas empresas não vão mudar. É uma falácia — essa coisa de falar: ah, mas se tiver diversidade, a empresa vai mudar. Ela é o que ela é, e ela tem os objetivos que ela tem. A gente não divulga mais vaga de ninguém assim, e a gente tem se colocado muitas barreiras com certas empresas. Tem o exemplo de uma empresa que sempre estava atrás da gente, que queria fazer uma parceria com a gente. A gente percebeu que era sempre perto de um escândalo, quando um motorista assediou alguém, existe uma articulação dentro das empresas para limpar a imagem, para criar a aproximação ao movimento feminista para limpar a imagem. Muitas empresas procuraram a gente pra limpar a imagem.

Eu vejo isso em grande escala, de uns anos pra cá. Como que você fala com grupos feministas e ativistas que não tem recursos, que não tem outras opções, para dizer não?

Exato. Para falar não. Você coloca as pessoas em posições impossíveis. Elas precisam trabalhar, elas precisam de recursos para viver. Com a posição que minas programam está, a gente consegue falar não. Eu acho que alguém precisa falar não. Muitas pessoas não estão em uma posição de dizer não. A gente passa muito pouco tempo cobrando grupos, e passa muito mais tempo se posicionando em relação as essas empresas. Uma coisa que a gente tem feito também, a gente tem levantando também indicações e ajudado grupos a se inscrever para outras formas de financiamento, com fundos feministas ou fundações daqui no Brasil. Isso tem sido uma possibilidade. A outra questão é que outros grupos que não querem fazer isso. É muito complicado falar disso, mas existem muitos grupos que não tem interesse em construir uma pauta — tipo, mais mulheres na tecnologia mas não é necessariamente uma pauta feminista, mas não necessariamente falar de mulheres na tecnologia como uma abordagem feminista.

É aquela logica de todas essas falas de diversidade, inclusão, representatividade servem pra supremacia branca, pq eles precisam dessas coisas para validação, para essa superioridade moral. “A gente também pratica direitos humanos, a gente também é ativista, pq a gente tem diversidade e tal”. Como se mulheres não cabessem classe, raça, muitas coisas.

E também como se você — agora tem várias mulheres negras em uma grande empresa tecnologia. E é uma tecnologia racista, vende tecnologia de inteligência artificial que é racista. Não é uma escolha fácil. A gente já perdeu muito financiamento por causa disso. [Mas no minas programam] todo mundo está trabalhando, e a gente tem uma estabilidade, mais ou menos, financeira que permite esse tipo de decisões. Mas, a gente vê também que o Brasil está vivendo uma recessão muito forte — o trabalho formal está se despedaçando.

Então, muitas pessoas, muitas mulheres que estavam fazendo seus projetos paralelamente — muita gente está perdendo o trabalho e está perdendo a possibilidade de fazer seus projetos paralelamente. Então, a sensação de disputa que muitas pessoas já sentiam antes, vai aumentar. A gente vai ver grupos de mulheres brancas, que viviam em contextos privilegiados, com grupos de mulheres indígenas, grupos de base, na base da pirâmide social no Brasil e que não tem acesso a outras formas de financiamento. Nesse contexto de recessão, o trabalho de mulheres negras no Brasil está ficando pra trás. Se você olha para quem está trabalhando na maior parte de fundações no Brasil, quem está financiando projetos como Minas Programam no Brasil, eles são brancos. Isso faz diferença na hora de escolher quem recebe financiamento. Porque quem consegue usar os projetos, quem consegue dominar essas habilidades, essas linguagens, são brancas. Cada vez mais, feministas não brancas no Brasil vão ter menos acesso ao financiamento, a gente falou várias vezes disso.

Sim! A gente fala demais disso.

É uma coisa muito louca. E no outro mês, a gente estava falando sobre uma nova iniciativa feminista que surgiu no Brasil, mas que surgiu com algumas questões de financiamento e também se segurança digital. Eu faço parte da Rede Ciberativista Negras, que é uma rede que a Criola formou, no Rio de Janeiro, mas que atua no Brasil inteiro.

Essa rede continua ativa?

Continua ativa, em alguns estados está mais ativa que em outros estados. É uma rede que está se auto-sustentando agora. Esse ano, acho que está bem mobilizado por causa do contexto atual. É uma coisa que a gente pensa há anos, até antes dessa rede existir. Como é perigoso denunciar violência, abusos nesse tipo de espaço [online]. Enfim, mil questões. E ver que várias feministas que estão trabalhando esse tema há anos, às vezes elas perdem financiamento para esse tipo de iniciativa que já surge com várias questões. Eu já discuti essa questão, [e reitero], o nosso trabalho vai ficar mais difícil do que já era.

A gente tem discutido o tema de financiamento demais nos últimos anos. Como que você sente sobre os projetos que não conseguem sair do papel, e como você sente sobre projetos que você consegue tirar do papel.

Eu acho que os projetos que eu consigo tirar do papel sem precisar pensar demais. Geralmente eu consigo tirar do papel, se eu não preciso questionar tanto se ele faz sentido, se ele é um projeto válido, se eu era a pessoa certa pra esse espaço, se elas são as pessoas certas para o projeto — são todas perguntas importantes pra fazer. Na minha experiência, eu sinto que os projetos que dão certo, os projetos que eu sou motivada a fazer sem precisar caçar muito uma resposta a essas perguntas, mas considerando as respostas para essas perguntas. Para Minas Programam, a gente pensou, “eu quero fazer isso independente de todos os outros fatores”. Ao mesmo tempo, eu sempre sinto que os projetos que não deram certo ainda, vão dar certo em algum momento.

Você acha? Eu tô passando por um tempo de reflexão. Como esse grupo de pessoas que queriam fazer uma coisa boa não se olhou, não se tocou

Eu acho que têm projetos que não deram certo ainda, mas não vai dar certo na minha mão, mas vai dar certo na mão de outras pessoas, eu posso dar um palpite, eu posso ajudar de outras formas.

Quais critérios que você usaria, por exemplo — para pensar no seu lugar, no seu papel num projeto. Eu vejo isso como muito feminista, ser feminista deveria ser essa possibilidade, habilidade de se olhar, de se questionar sobre participação, inclusão, e processos e tal. Como que você faz isso nos seus projetos, decidir se você é a pessoa certa, como que você divide a liderança e tudo mais?

Então, eu tenho pensado que quando mais próximo para a minha realidade o projeto é, mais certeza que eu tenho sobre o projeto. Eu sei que eu falo muito sobre minas programam, mas é porque me influencia muito. Muitas vezes, as pessoas têm convidado pra gente atuar fora de São Paulo. A gente sempre relutou muito e a gente sempre prefere indicar outros grupos fora do eixo Rio — São Paulo pq… senão, a gente cai de paraquedas num contexto que não tem nada a ver com a gente, que a gente nada conhece. Um critério é o quão próxima eu sou dessa questão. Quando eu sou convidada quando — amigas me vem com ideias, com projetos que eu sou muito distante daquela realidade, eu tendo a falar, ah, fala com essa outra pessoa que tem mais a ver! Porque eu acho que pensar a nossa posicionalidade é entender que às vezes, as nossas contribuições são super limitadas. Às vezes, não é relevante! Uma vez, me chamaram uma vez para fazer numa oficina disso num outro estado que é milhares de quilômetros, e essa realidade não tem nada a ver com a minha eu não sei, eu não sei. Eu tenho pensado muito menos em como escalar projetos e muito mais em construir com pessoas dos contextos que sejam próximos ao meu. Outro critério muito muito muito importante é ver quem já está fazendo isso, e como potencializar o trabalho dessas pessoas.

Recentemente, nesta semana, eu comecei um projeto com duas amigas. A gente começou um projeto para compartilhar informações com pessoas da periferia, pessoas negras, indígenas, pessoas que tradicionalmente não estão na faculdade ou em um mestrado. Como chegar nessas administrações se elas quiserem chegar lá. A gente pensou muito tempo em: qual é o melhor formato pra fazer isso? Se vale a pena, se ñao valer e tal. A nossa preocupação era, a minha né, no meu caso, é que assim: a nossa família veio de um contexto de pobreza, assim. A gente já viveu uma ascensão considerável — então a gente pensou, será que não vai ficar uma coisa fora da realidade das pessoas com quem a gente tá conversando? A forma que a gente lidou com isso foi chamar outras pessoas que tivessem mais próximas aos seus contextos [do público ideal]. A gente não está pensando: só aprenda com a pessoa do seu contexto. Mas foi a forma que a gente encontrou para minimizar a nossa voz no projeto que é só para fazer que essas informações chegarem.

Sim, ficou claro. Eu amei esses critérios, eu acho que muita gente se pergunta as mesmas perguntas mas não é um processo muito óbvio, de pensar no seu lugar de ação. Também queria te perguntar como você se vê, como foi seu crescimento e desenvolvimento individual e pessoal liderando esses projetos com outras mulheres. Ao meu entender, você não quis fundar as coisas sozinha, você sempre quis participar nos projetos dividindo as formas de decisão, as estruturas e tal.

Eu acho que em vários momentos da minha vida, você vai percebendo que as coisas são melhores construídas por várias mãos. Todo mundo tem sua forma de fazer as coisas, eu sei que eu sou muito assim, eu tenho muito meu jeito de fazer as coisas. Fazer coletivamente, eu acho que realmente fica melhor, ao final, e é um dos motivos porque eu acho que fica melhor é porque as nossas vivências são múltiplas. As mulheres no Brasil — você tem vivências completamente diferentes, mesmo em São Paulo, você vê realidades completamente diferentes em todos os projetos. Eu queria que esses projetos fossem espaços acolhedores para vivências diferentes, para vivências fora da “norma” que você vê na TV ou na faculdade. Construir coletivamente foi meio o que definiu esses projetos e o que fez sentido pra mim ou não. Além de ser coletivamente, é pensar quem está construindo, quem está propondo as coisas.

Além de construir os projetos coletivamente, eu tento participar em projetos pensando em quem são as pessoas construindo. Porque eu acho que as coisas vão reverberando aos poucos, as formas de trabalhar, não só pensar também sempre no coletivo, mas como que esse coletivo toma as decisões. No Minas Programam, a maioria das decisões são tomadas coletivamente. A gente tem alguns consensos sobre algumas coisas, nosso modo de trabalhar e tal. Por exemplo, antes de começar os cursos, a gente faz um dia de formação em questões de gênero, raça, e classe no Brasil para todas as professoras. A gente quer meio que partir de alguns consensos e de alguns acordos em comum. Eu acho que além de construir coletivamente, é ser bem intencional sobre o tipo de coisa que você está construindo e com quem.

Obrigada Bá! São as perguntas que eu tinha para você. Ah, e mais algumas… Eu praticamente parei de ler, e voltei para ler no começo desse ano. O que você está lendo nesses últimos tempos? Tem alguns livros para recomendar?

Eu também! Eu estava lendo muita coisa acadêmica por causa do mestrado. Agora eu voltei a ler espontaneamente, e sobretudo a ler ficção. Eu tenho me refugiado na ficção nesses últimos meses. Tanto para escapar e pensar em coisas novas, quanto para imaginar novas realidades para nosso mundo. Dos livros que li em 2020 até agora, eu gostei muito de Girl, Woman, Other dá Bernardine Evaristo e Queenie da Candice Carty-Williams. De literatura brasileira, recomendo muito Torto Arado, do Itamar Vieira Junior. O livro relata a história de duas irmãs vivendo no sertão da Bahia. E também Olhos d’Água, da Conceição Evaristo. Recentemente também me aventurei na ficção científica (algo incomum para mim!), e li a trilogia Binti da Nnedi Okorafor. Foi muito revigorante e com certeza vou ler mais da Okorafor em breve.

Eu acho que voltar a ficção muda totalmente a cabeça.

Eu fico muito nessa coisa de: eu tenho que ler uma coisa “útil”. Eu estava só lendo não ficção, os temas ligados ao trabalho e ao mestrado. Voltar a ficção e ler livremente, tem sido um processo muito legal. É uma das coisas que eu mais estou gostando desse ano. E estou tentando voltar a escrever também. No começo do meu ativismo e meu encontro com feminismo, eu articulava os pensamentos muito escrevendo. Começando minas programam, eu escrevia muito — eu escrevia no Blogueiras Negras, e m outras revistas, para mulheres e tal. Eu fiquei um pouco sem voz recentemente, acho que com o trabalho e o mestrado…

Ah, mas a gente passa por altos e baixos. Eu acho que escrever não é só um processo acadêmico, é um processo criativo e é como qualquer outro processo criativo, você tem que ter motivação e ficar inspirada às vezes. Também fico com altos e baixos, começar a newsletter para mim é uma forma de estabilizar o meu processo criativo, para que não fique dependendo de fatores externos. A minha pressão vai ser o motor, as entrevistas que eu marquei.

Eu tenho certeza que você vai escrever [mais, agora]. E como que você tá tirando prazer nesses dias? Além de ler, tem mais alguma coisa que tá te dando energia, ajudando no processo criativo, ou simplesmente ajudando você a aproveitar a vida?

Tá sendo difícil manter uma rotina de prazer esses dias. Mas eu realmente acredito na Brittney Cooper quando ela diz que não há justiça para mulheres negras sem prazer, então tenho tentado manter mini momentos prazerosos. Eu tenho cozinhado/comido muitas coisas gostosas e que nutrem minha cabeça e meu corpo. Eu tenho procurado cuidar da minha saúde com uma perspectiva de que viver bem é o que eu mereço, é o que nós todas merecemos. Outra coisa que to tentando é garantir que os espaços em que eu vivo tenham bastante plantas e arte. ❤

--

--

Ani Hao

Feminist journalist, editor, media consultant and DJ. Founder of Agora Juntas (Rio de Janeiro), currently based in Hong Kong.